Ontem fiz a volta dos sem-abrigo com os voluntários da Comunidade Vida e Paz. Vi uma Lisboa que desconhecia e conheci pessoas que nunca tinha visto. Pessoas que me passam ao lado, que me têm passado ao lado, como se fossem etéreas e invisíveis. Ontem vi-as mesmo. E dei-lhes comida, tempo, palavras, atenção e sorrisos. Percebi que um pequeno gesto pode fazer a diferença. E quando falo de um pequeno gesto, falo apenas de um sorriso, de um aperto de mão, de um olá, muito gosto em conhecê-lo.
E voltei para casa feliz, a lembrar-me das histórias do Vitorino, do Artur, do Francisco, do Pai Natal, daquele casal gay de meia idade simplesmente hilariante e de tantos outros rostos que, até ontem à noite, me eram completamente desconhecidos e indiferentes. Quando cheguei a casa não consegui adormecer. Acordei o G. e fiquei, por mais de duas horas, a contar-lhe todas as histórias, todos os cheiros, tudo o que vi e senti.
Hoje acordei e apercebi-me do quão privilegiada sou. Eu não sei o que é ter frio nem fome. Eu não conheço a solidão dolorosa dos degraus e recantos gelados das ruas de Lisboa. Eu não sei o que é a ansiedade, a espera, a disputa por um par de meias ou mais uns ténis. Eu não sei o que é ficar zangada quando a carrinha da Comunidade se atrasa...
Ontem levei um banho de realidade, de uma realidade que vinha a ignorar há demasiado tempo. Percebi que não posso mudar a vida de todos os sem-abrigo de Lisboa mas posso mudar-lhes as noites, fazer-lhes companhia, ouvi-los simplesmente e devolver-lhes os sorrisos doces estampados nos rostos tristes. Aliás, podemos todos. Não custa nada. As palavras e os sorrisos, felizmente, ainda não pagam imposto...